NOCAUTE

Friday 9 April 2010

GRITOS E SUSSURROS

O agente funerário estranhou a cerimônia restrita a apenas duas pessoas, porém, cumpriu sua missão sem perguntas. Ao se despedir, pediu licença para entregar o cartão de visita em que divulgava sua graça – Seu Neneca –, endereço eletrônico, telefone e os serviços que prestava nas horas vagas: pedreiro, encanador, eletricista, pintor e marceneiro. O homem da pá não se conteve e comentou: além de entregador de cadáver, o senhor é um verdadeiro homem Bombril, Seu Neneca. Este riu, soltou uma frase na direção da cova – enquanto não tiver os pés no buraco, vou me virando – desejou boa sorte aos dois e se foi, acelerando e buzinando seu rabecão, como se houvesse deixado pra trás dois futuros clientes.


Sozinhos, ele olhou pro coveiro e se jogou sobre o caixão, aos gritos, anunciando que resolvera ser enterrado junto com a defunta. Amaldiçoou a rigidez da madeira e pediu um martelo para melhor fixar um prego na borda à esquerda. Arrancou a ferramenta das mãos do coveiro, mas a excitação o impediu de acertar a cabeça achatada. Uma, duas, três... dez tentativas, desistiu e lançou o martelo ao longe, atingindo o peito de um Jesus numa cruz de mármore diante de um túmulo em granito bege. Ao filho de Deus britou em seis pedaços, à cruz em três. Bradou um vamos lá, ouvindo como resposta a voz rouca no interior do féretro: ainda não, meu bem. Desceu do tampo, apontou o indicador na direção do bojo e urrou: ela está viva. Um estranho de óculos escuros, camisa azul-marinho e calça preta, que acabara de enterrar a mãe nas proximidades interveio: ela quem? No troco, tomou na proa um isto, caro senhor, não é da sua conta, e seguiu chateado no seu caminho.

Chutes nas paredes do esquife e pedidos abafados por socorro agilizaram as ações. O coveiro correu em busca de uma alavanca e marreta de ferro, enquanto ele acalmava a encaixotada, que implorava por urgência, sussurando-lhe: fique fria, amorzinho, a ajuda está a caminho. Munido de vontade e apetrechos, ele se aproximou da cabeceira do caixão e, antes de agir, perguntou ao companheiro se este não gostaria de tomar as providências. Declinada a incumbência – a lazarenta é toda sua -, ele colocou a ponta da estaca no ponto do tampo correspondente à região do coração e desceu a marreta com uma força que nunca julgou ser capaz de possuir. O ferro rasgou rangendo o mogno, dilacerando a firme estrutura que plangeu suas dores, e penetrou onde esperado, fazendo jorrar pela frincha, depois de um ai, um filete rubro que desenhou, ao lado de um ramalhete esculpido em alto relevo, a palavra: assassino.

Uma fina chuva começou a cair apagando aos poucos a mensagem, carreando o líquido vermelho de volta ao interior do caixote. Cordas de plástico desceram a peça, pás de terra cobriram a cratera e, terminada a função, ele plantou quatro mudas de rosa vermelha, duas à cabeceira e duas aos pés, despedindo-se com brandura: descanse em paz, querida, e até a eternidade. O coveiro sussurrou-lhe ao ouvido direito: patrão, parece que o veneno não está funcionando direito. Ele concordou avisando que iria reclamar com o laboratório, talvez até trocar de. Elogiou o cúmplice e se pirulitou em um táxi, fornecendo ao motorista o endereço da próxima vítima.

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