NOCAUTE

Saturday 23 January 2010

O DESEJO

A porciúncula de goiabada cascão está dependurada, no lado do selo colado com o prazo de validade, no canto direito da caixinha retangular de madeira, pinus, um centímetro acima do grosso grampo metálico de fixação, colocado em posição vertical, na parede mais fina da frágil estrutura. Olha para o interior da embalagem, onde ainda dorme uma fatia apetitosa e louca pra se juntar a um pedaço de queijo, e passa a analisar de que região se desgarrara a ingênua. Pelo visto, pulara da encosta próxima ao topo da montanha doce-avermelhada, sem a mínima consciência do abismo existente entre a borda, onde precariamente se equilibra, e a toalha sobre a mesa de peroba encerada, onde se encontram, entre outros, os seres: uma bisnaga contendo 280 gramas de mel de flores silvestres com validade até 12 de 2011; uma latinha enfeitada com desenhos de sanduíches, bisnagas de plástico e tomates, nas cores vermelha, branca e mostarda, cuja altura não vai além da cintura da garrafa cheia de café; um açucareiro de porcelana parecendo uma foca obesa decorada com nêsperas e cerejas maduras; e uma lata de manteiga de primeira qualidade, com sal, levemente amassada no lugar onde uma vaca pasta, indiferente à passagem de um enorme avião que, ao contrário daqueles conduzidos por pilotos inábeis que acabaram destruindo as torres gêmeas univitelinas norte-americanas, parece haver decepado apenas os últimos andares de um enorme edifício e seguido em frente. Tudo, ali nas redondezas, deseja que a insignificante porção venha de uma vez abaixo, um pãozinho francês inclusive, que grita: à outrance!

A porciúncula balança, não cai, ao ouvir os guinchos de três quero-queros em voo rasante, que parecem perseguidos por uma milícia de ensandecidos javalis voadores, munidos de armas de grosso calibre. A queda representa o suicídio, porque é exatamente o que ele espera para matar a vontade, depois de haver decepado com uma faca serrilhada parte da porosa massa, produzida em São José do Rio Pardo, que o observa e anseia, evidentemente, pelo tombo da filha da goiabada. Começa a contar o tempo no relógio de parede onde um enorme galo, com arrogância de pavão, provavelmente por causa do nome pomposo que ostenta, Red Rooster, nada faz além de esperar a passagem dos ponteiros sobre o romano X, situado na ponta do seu bico cor de moranga à espera de camarões, rosa ou sete-barbas, comprados a peso de ouro nalgum bom mercado municipal. Movidas à pilha alcalina tamanho AA, as hastes trabalham como instrumentos de tortura a gotas e o vão levando a um estado de desespero, atestado na insopitável e abundante salivação.

Chega! grita, fazendo voar - e se esconder atrás da garrafa térmica - um guardanapo de papel, tamanho 24 por 24 centímetros, que, segundo o produtor, evoca o estilo dos hotéis mais chiques e sofisticados para dar à mesa do freguês um toque de classe. A porciúncula não resiste ao berro, desaba sobre um cacho de morangos, deitado na toalha, temendo o próprio fim. Um sorriso antecede a realização do inelutável desejo: faca em riste, ele enfia a ponta inclemente onde estaria localizado o coração, levanta o delicado corpinho empalado junto com o já entregue pedaço de queijo. Aboca. Ao retirar, a faca corta seu lábio - uma gota de sangue marca a lâmina.

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NOCAUTE

Friday 22 January 2010

AMOR ECONÔMICO

- Amorzinho, vamos fazer um programa de alívio dos ativos problemáticos?
- Qual é a sua expectativa de bônus obsceno?
- Não fale assim como um barato Obama.
- Acontece que meu déficit orçamentário está pior que o da Grécia sob o euro, prestes a abandonar de uma vez a zona.
- Acalme-se, meu Papaconstantinou, aproveite o clima quente dos trópicos.
- Falar é fácil.
- Você precisa adotar uma política monetária contracíclica contra as incertezas. Minha taxa Selic, por exemplo, encontra-se abaixo da calculada pela regra de Taylor, as minhas curvas mostram que tenho seguido um regime rígido, sempre de olho no futuro. O tratamento é duro, mas compensa.
- Como está o seu nível de ‘rating’?
- BBB, como na Rede Globo.
- A taxa de classificação não me parece convincente, ante a preocupante crise financeira em que ainda estamos atolados.
- Levadas em conta as dificuldades dos giros, nas bolsas mundiais, nosso mercado está melhor do que podemos imaginar. Aliás, a previsão é de que este ano será bom para todas as categorias da transformação.
- Talvez estejamos chegando a alguma convergência.
- Eu aplico 0,15% sobre o passivo do ativo.
- Você age como uma verdadeira ‘short-seller’.
- O conceito não me é estranho.
- Claro que não, sua vendedora de valores a descoberto.
- Meu grande sonho sempre foi ser uma bolha preste a estourar.
- Eu exijo total transparência nos atos.
- Fique tranquilo, querido, tenho um patrimônio material e moral a defender.
- Google?
- Como?
- Google?
- A definitividade do negócio dependerá da apreciação reguladora, todavia, a quebra de confiança não contagia o desempenho do conjunto.
- Como você fala bonito.
- Contrario suas expectativas?
- Contrariar, às vezes, significa alavancar o crescimento.
- Bote fé, meu bem, o humor do mercado lhe sorri, confiante como o touro de Wall Street.
- Espero uma forte relação entre compensação e desempenho.
- Invista, amor, a bolsa está em alta.
- Acho que é chegado o momento de apostar tudo.
- É hora de ação.
- Ação, portanto, minha ‘blue ship’!
- Realização, realização, meu pregão eletrônico!
- Ufa! você esgotou minhas reservas, minha Bolsa de Xangai.
- Dá cá um Beijin, meu capital especulativo.

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NOCAUTE

Saturday 16 January 2010

AMOR ECONÔMICO

- Amorzinho, vamos fazer um programa de alívio dos ativos problemáticos?
- Qual é a sua expectativa de bônus obsceno?
- Não fale assim como um barato Obama.
- Acontece que meu déficit orçamentário está pior que o da Grécia sob o euro, prestes a abandonar de uma vez a zona.
- Acalme-se, meu Papaconstantinou, aproveite o clima quente dos trópicos.
- Falar é fácil.
- Você precisa adotar uma política monetária contracíclica contra as incertezas. Minha taxa Selic, por exemplo, encontra-se abaixo da calculada pela regra de Taylor, as minhas curvas mostram que tenho seguido um regime rígido, sempre de olho no futuro. O tratamento é duro, mas compensa.
- Como está o seu nível de ‘rating’?
- BBB, como na Rede Globo.
- A taxa de classificação não me parece convincente, ante a preocupante crise financeira em que ainda estamos atolados.
- Levadas em conta as dificuldades dos giros, nas bolsas mundiais, nosso mercado está melhor do que podemos imaginar. Aliás, a previsão é de que este ano será bom para todas as categorias da transformação.
- Talvez estejamos chegando a alguma convergência.
- Eu aplico 0,15% sobre o passivo do ativo.
- Você age como uma verdadeira ‘short-seller’.
- O conceito não me é estranho.
- Claro que não, sua vendedora de valores a descoberto.
- Meu grande sonho sempre foi ser uma bolha preste a estourar.
- Eu exijo total transparência nos atos.
- Fique tranquilo, querido, tenho um patrimônio material e moral a defender.
- Google?
- Como?
- Google?
- A definitividade do negócio dependerá da apreciação reguladora, todavia, a quebra de confiança não contagia o desempenho do conjunto.
- Como você fala bonito.
- Contrario suas expectativas?
- Contrariar, às vezes, significa alavancar o crescimento.
- Bote fé, meu bem, o humor do mercado lhe sorri, confiante como o touro de Wall Street.
- Espero uma forte relação entre compensação e desempenho.
- Invista, amor, a bolsa está em alta.
- Acho que é chegado o momento de apostar tudo.
- É hora de ação.
- Ação, portanto, minha ‘blue ship’!
- Realização, realização, meu pregão eletrônico!
- Ufa! você esgotou minhas reservas, minha Bolsa de Xangai.
- Dá cá um Beijin, meu capital especulativo.

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NOCAUTE

Monday 11 January 2010

DOIS MIL É DEZ

O ano novo ficou surpreso, conforme me assegurou em entrevista coletiva exclusiva no dia em que nasceu. Assentado em calendário recebido como brinde de uma das mais conceituadas entidades do mercado financeiro, presente distribuído a pessoas muito especiais, incapazes de montar a surpresa sem a ajuda de crianças especializadas em quebra-cabeças, 2010 recebeu a imprensa na primeira casa do calendário parede-meia com a do número dois. Ele estava um tanto assustado com as torrenciais chuvas das últimas semanas, que levaram na enxurrada os 365 dias do almanaque do passado, agora histórico. ‘Passatempo, passatempo’, disse o guri recém-coberto de penas aprendendo a voar. ‘Anum novo, vilã nova’, completou, referindo-se à mãe, dele, que caíra na vida quando soube da independência de dom Preto I, louco pra transar com uma anum fêmea, boa pra reproduzir a espécie ainda não ameaçada de extinção.

‘Unf, unf, unf’, espirrou o cão-d’água português adotado por um imperador não-chinês que atravessava, como um Titanic, as águas do rio Paul Krugman que desaguam na pororoca do caudaloso rio Neoliberal. ‘Glub, glub, glub’, acrescentou o novo ano, preste a se afogar nas águas dos temporais muito milímetros acima do esperado pelas autoridades daquele choque anafilático.

- Onde estamos? - perguntou o governador José Serra, equilibrado sobre o muro, ao seu companheiro de sacanagens Neves Mineiro.
- Meu nariz aponta para o norte da saudade – respondeu o Neves, na ocasião animado por Adriano da Galistéia, que dançava ao som de Gilberta Jiló.
- Assim o epicentro desanda – lembrou FH, cê, hein?, pensando no que vem acontecendo em Champagne sem a sua presença.
- Eu sei, afinal, eu sou o cara, conforme disse aquela figura de cujo nome nem quero lembrar enquanto não me esquecer – acrescentou filosoficamente Lula da Silva, o presidente de Garanhuns.

Havia um impasse no ar, er’óbvio, pois todo mundo sabia que uma coisa era caça à francesa, outra, caça à sueca, uma vez que, na primeira opção, recomendava-se o uso dos recursos tecnológicos para avaliar o custo do michê, enquanto, na segunda, praticava-se a auto-imolação a qualquer custo. Derramava-se a discussão nos interstícios das filigranas da amofinação, quando surgiu James Cameron com uma proposta irrecusável: ‘Deem-me 1 bilhão de dólares que eu resolvo tudo’. Um deputado, cujo nome m’escafede, considerou a idéia descabida. Um dos mais insignes representantes do poder judiciário brasileiro, cuja graça igualmente m’escapa, insinuou que a quantia era razoável, desde que o grande cineasta titânico estivesse disposto a discutir um percentual a ser doado a uma instituição beneficente por ele indicada. O presidente do Senado à brasileira, cujo nome picou a mula, resolveu que trabalharia contra a proposta se não contemplasse uma ajuda a um mausoléu em São Luiz do Maranhão. Finalmente, o presidente do Irã, cujo nome evadiu-se-me, ao ser convidado a um chá na Academia Brasileira de Letras, deixou claro que o ocidental medo da bomba é algo absolutamente efêmero. Dois mil é dez.

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NOCAUTE

Wednesday 6 January 2010

AH! VÁ! TÁ!

Nos tempos que correm – e como! -, certos sucessos do cinema vêm sendo analisados por certos críticos - e por muita gente normal – a partir do seu sucesso comercial. Rendeu, é bom, ganha a chancela da ideologia do consumo, fundamentada naquele delicioso tirlintar. Glorioso, carimba The New York Times, a Bíblia da nossa macacada refinada. Daqui pra frente, definirá o que o cinema pode realizar, lasca a Time. O mais lindo filme que vi há anos, em The New Yorker. Quatro indicações ao Globo de Ouro. Nove indicações ao Oscar – Titanic recebeu 14 e faturou 11 estatuetas, Avatar arrecadou 77 milhões de dólares só no primeiro fim de semana de exibição nos Estados Unidos. Campeão de bilheteria no Brasil. Já é a quarta bilheteria de todos os tempos - estatística meio besta, seja projetada no passado, centenário, seja pro futuro do cinema. Enfim, o avatar do artista passou a ser visto, essencialmente, por sua capacidade de converter lixo cultural em ouro. Ao singrar seu Titanic num atlântico mar de dólares, James Cameron angariou a simpatia e o respeito dos investidores, que descobriram o batedor que os conduz ao Potosi da sétima arte. E os deuses mimosearam Cameron com a caixa registradora de Pandora.

Avatar é tão épico quanto uma rodada de bingo. Lá está Jake Sully, um Jack ‘Caprio” Dawson turbinado como um veterano de guerra, em cadeira de rodas, que recupera os movimentos ao ser teletransportado, em sua jornada às estrelas, para integrar-se àquela comunidade esquisita e roubar sua riqueza. Sob extrema indignação, Jake percebe que o império nada respeita e, como bom mocinho que é, toma o partido do bem na luta contra o mal, liderando a batalha de sempre para salvar a civilização em perigo. O manjado conflito de civilizações, sacou? Lá está Neytiri – a nova Rose DeWitt Bukater titânica -, a queridinha do clã Na’vi que salva o mocinho. Lá está Grace Augustine, uma Ellen Ripley com seu Parker (Alien), branqueado, na pele de Giovanni Ribisi, um gozador que vê fumaças suspeitas por trás das idéias em curso. Finalmente, para encurtar as 2 horas e 30 minutos de amofinação e clichês, lá está o Coronel Miles Quaritch (um Bill 'Apocalipse Now" Kilgore), louco como um texugo, como diria Fisk Senior (O’Toole) em Dean Spanley, rodando a baiana com os velhos, conhecidos, hiperbolizados e bestiais apetites do império atrás de um raro minério.

E daí, o que há de novo, velhinho? Well, dear, a tecnologia digital dos efeitos especiais em terceira dimensão, à Magic Kingdom, no mundo daqueles Na’vis de narizes perfeitos para o uso de óculos de papelão com lentes de plástico colorido. Uma festa: o ‘renderizado’, as montarias que parecem uma mistura de Alien com Hippocampus erectus, os parassaurolofos saídos d’algum Parque dos Dinossauros, com velocidade de Nighthawks, delicadas águas-vivas que flutuam graças a possível ação de potente alucinógeno, a inacreditável Árvore das Almas e mais, um monte de bossas que tenho certeza inspirarão milhares de novidades a serem vendidas pelos camelôs, para o próximo Natal, nas calçadas da 25 de Março. Depois de tudo isso, o duro mesmo foi tomar o elevador, apertar o G 2 do piso do estacionamento e ouvir uma das bichinhas do casal perguntar: vocês não gostaram? Tive vontade de gritar – Ah! Vá! Tá! -, mas achei que as lágrimas do riso da minha mulher já diziam tudo.

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