NOCAUTE

Wednesday 24 March 2010

PERIGOS NAS ENTRELINHAS E LINHAS

Amigo é quem avisa, portanto, não tente ler nas entrelinhas deste texto, uma vez que nestes exíguos espaços se escondem alçapões, trampas, arapucas, currais, cercos, laços, mundéus, ardis, emboscadas, enfim, coisas que escapam ao meu governo e - si hay gobierno, soy contra - não posso ajudar a quem quer que se aventure numa empreitada tão desatinada. Comecei a lobrigar (eta! verbinho seboso) tais perigos nos distantes idos do Ginásio, quando a professora Romilda Medeiros já me ensinava, com todas as letras, que não se deve brincar com elipse, sinais diacríticos e babados semelhantes. Romilda não dava sopa para mesóclise de folgado, enquanto competia, em rigor e reprovação, nas linhas e entrelinhas, com a mestra Maria Augusta, uma dogmática que me infernizava a existência com as linhas do paralelogramo e de outras figuras do seu baú geométrico. Aos trancos e barrancos, consegui ultrapassar a linha final do curso ginasial, onde aprendi que, depois de pular o muro escondido do bedel, a menor distância entre a sala de aula e o Cine Diamante era uma linha reta.

Nas entrelinhas e entre linhas, muitas águas já rolaram por baixo da minha ponte. Nas entrelinhas, certa vez tropecei na perna de um cê-cedilha e cometi um dos erros mais bestas da minha vida. Bispei, entre linhas, situações horríveis nos desenhos animados em geral, particularmente nos do Papa-Léguas. Entrelinhas, enforquei o pingo de um jota metido a janota no laço de um gê. Entre linhas, viajavam os passageiros do horário das dez, nas manhãs dominicais, sob um calor de 40 graus, vítimas dos meus petelecos nos seus picolés colocados a respingar, fora da janela do trem, sobre a plataforma da estação de Catende. Tempos depois descobri que Mario Monicelli fora muito menos cruel, na sua deliciosa comédia, com tapinhas no rosto. E, nos mesmos trilhos, entre linhas caíam as brasas da maria-fumaça que me atormentavam a vida moleca quando tentava abandonar o bigu antes do ponto final do comboio ferroviário.

Entrelinhas, despencou um acento agudo e se cravou como um punhal no crânio do último ó do borogodó. Entre linhas, os lambaris sempre me deixam nervoso ao encarar minhas iscas como aperitivos no palito. Entrelinhas, vivo às turras com as crases. Entre linhas, lobriguei (este verbo está me perseguindo) o que aconteceu quando os militares brasileiros optaram pela dura, depois do Golpe de 1º de abril de 1964. Entrelinhas, no dia em que coloquei um chapéu na palavra côco, em cabeça-de-coco, a professora me chamou de avoado. Entre linhas, vi Marzilda procurar o dedal e se ferir numa agulha sem linha, amoitada na almofadinha de retalho. Entrelinhas, grifei a palavra habanera e corri ao dicionário, para não dançar. E por aí se esparramam os perigos nas entrelinhas e linhas.

Você pode se arriscar entre parágrafos, aí sim, onde a divisão é mais espaçosa e cria um corredor com saída tanto para a esquerda quanto para a direita. Note que, em geral, o campo do lado direito é mais generoso, quando a linha que o invade perde o fôlego e não consegue chegar até o fim dela mesma. Nunca tente a fuga já no primeiro parágrafo, arriscando-se a uma queda livre das alturas. Siga pelo menos até o penúltimo. O ideal mesmo é abandonar o texto na última linha.

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